Longa-metragem inédito O Rio do Desejo, de Sérgio Machado, baseado em conto do escritor amazonense Milton Hatoum, fala da literatura, de pactos de sangue e da sensualidade sobre as águas do rio Negro; ele será exibido às 20 horas desta terça-feira, 7 de março, em Manaus (Foto: Divulgação)
São Paulo (SP) – O Rio do Desejo, longa-metragem de Sérgio Machado que tem uma sessão especial nesta terça, 7 de março, às 20 horas, no Teatro Amazonas, em Manaus, navega nas águas profundas da tradição literária. Baseado em O Adeus do Comandante, sexto dos 14 contos da primeira coletânea do escritor amazonense Milton Hatoum, A Cidade Ilhada, publicada em 2009 pela editora Companhia das Letras, o longa-metragem incorpora ainda outras atmosferas e sutilezas do livro do qual pinçou o roteiro. E, de quebra, evoca clássicos da literatura latino-americana, citações e influências das quais Hatoum lança mão nesse celebrado livro.
A exibição do filme em Manaus precede uma homenagem ao autor também no Teatro Amazonas, no dia 9 – a produção tem previsão de estrear no resto do País no dia 23 de março. Sua primeira exibição foi na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Milton Hatoum vai receber o título de Doutor Honoris Causa, honraria concedida pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), como um reconhecimento pela disseminação da cultura amazonense em suas obras. A homenagem será às 19 horas desta quinta-feira, 9, no auditório da Faculdade de Medicina da universidade.
Filmado no Amazonas, cuja geografia, humana e ambiental, incorpora-se energicamente à narrativa, conduzindo seu desfecho, o longa constitui-se, principalmente, num vertiginoso trabalho de atores – uma espécie de duelo de inflexões dramáticas magistral entre os intérpretes Daniel de Oliveira (Dalberto), Gabriel Leone (Armando), Rômulo Braga (Dalmo) e Sophie Charlotte (Anaíra), o vértice de um quadrângulo amoroso de tirar o fôlego.
Compõem o elenco diversos artistas do cinema amazonense, como o ator, poeta e comediante Nivaldo Motta, a atriz e humorista Rosa Malagueta, o líder indígena, ator e político Fidelis Baniwa, as atrizes Isabela Catão e Maria do Perpétuo e o ator, curador e cineasta Diego Bauer (diretor de Terra Nova, Melhor filme estrangeiro no Istambul Film Festival, na Turquia).
Na trama, Dalberto é um comandante de barco que transporta um passageiro misterioso (o colossal ator peruano Coco Chiarella, que morreu logo após as filmagens, de Covid-19, aos 77 anos, em 2021) em uma longa e arriscada viagem pelo rio Negro até Iquitos, no Peru, buscando amealhar recursos extras para realizar um sonho da mulher com quem é recém-casado, Anaíra. Durante esse período de ausência, que se estende por tempo indefinido, Anaíra fica em casa com os irmãos do marido Dalberto: o caçula Armando, de temperamento libertário, e Dalmo, fotógrafo de hábitos de monge, calado e conservador.
O diretor baiano Sérgio Machado tem uma longa folha corrida na TV e no cinema. Foi assistente de direção de Walter Salles em Central do Brasil (1998) e O Primeiro dia (1998) e roteirista e diretor assistente de Abril Despedaçado (2001). Neste longa, mais do que margear as arestas políticas da região amazônica, que são imensas, ele percorre o caminho de fora para dentro do indivíduo, do ser humano, e de seus incontáveis afluentes psicológicos e emocionais.
Entretanto, em vez do amor yuppie e dos romances urbanoides mais comuns da cinematografia nacional, geralmente sustentados pela ética rodrigueana, Machado vai ao coração dos amores do povo, dos amores caboclos, de poucas palavras, pactuados em silêncios, explosões de sensualidade e erotismo coreografados entre balés de brega e carimbó e atravessados por pactos de sangue.
No conto original de Milton Hatoum, O Adeus do Comandante, há um componente de forte misticismo, de força do sobrenatural, que não está presente no filme – a não ser na presença premonitória da cozinheira que não sorri. “O Sérgio preferiu enfatizar a relação dos três irmãos com a personagem feminina, a Anaíra, a Sophie Charlotte. Então vamos dizer que a atmosfera, os indícios do sobrenatural, cabiam bem no conto, na concisão do relato. É um texto de poucas páginas. O mistério, na verdade, gira em torno dessa paixão dos três irmãos pela Anaíra, e o desejo é o próprio mistério”, afirmou Hatoum a Amazônia Real.
O cineasta Sérgio Machado pediu ao escritor amazonense que escrevesse mais “dois ou três” textos inéditos “para encorpar o roteiro e desenvolver a relação entre os quatro personagens principais” do filme que se vê na tela. O autor vê a imanência do desejo entre os protagonistas como o próprio mistério do relato. “Essa paixão indômita, esse desequilíbrio, tem algo de sobrenatural também, não é?”
Escuridão da alma
O conto de Hatoum também tem como espinha dorsal a retidão ética de Dalberto, o comandante, mas nessa ordeira obsessão se esconde também um mergulho na escuridão da alma humana. Nisso, o desempenho de Daniel Oliveira é exemplar – sua personagem vai se tornando mais desnorteada e empapada de suor conforme o filme avança, à semelhança de um Klaus Kinski em Fitzcarraldo ou um Mickey Rourke em Coração Satânico, perdendo a linha gradativamente. O amor no limiar das últimas fronteiras, como serão suas regras, seus desígnios?
Milton Hatoum credita influência, na constituição dos contos de A Cidade Ilhada, de obras marcantes que leu na juventude, começando pelo uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1984). “E dos hispano-americanos que eu li na minha juventude em São Paulo, quando eu estudava arquitetura, especialmente a obra de Julio Cortázar (1914-1994), que é reconhecidamente um dos mestre da narrativa de formas breves. Então, por exemplo, contos como A Cidade Ilhada e Bárbara no Inverno têm uma atmosfera cortazariana. Eu devo mesmo a esse grande contista. Eu paguei tributo também a Machado de Assis. Encontro na península, por exemplo, tem uma referência explícita a um conto do Machado. E o último conto de Cidade Ilhada, que é Dançarinos na última noite, foi muito inspirado em Terpsícore, de Machado, aquela história do casal pobre que ganha na loteria e, ao contrário da expectativa do leitor e de todos, em vez de economizar e pensar no futuro, decide gastar tudo numa única noite numa festa de arromba.”
O Rio do Desejo ainda vai passar, antes de sua estreia nacional, pela 38ª edição do Mons International Love Film Festival, na Bélgica. O longa vai ser exibido no dia 17 de março na sessão oficial competitiva, com a presença do diretor. Neste mês de fevereiro, O Rio do Desejo foi exibido e selecionado para a Competição Oficial Ibero-Americana de Longas-Metragens de Ficção e Documentário da 25ª edição do Festival Internacional de Cinema de Punta del Este (Cinepunta), no Uruguai. No festival, Sérgio Machado e Sophie Charlotte receberam uma menção honrosa de Melhor Diretor e Melhor Atriz, respectivamente. Já em novembro de 2022, O Rio do Desejo levou o prêmio de Melhor Fotografia na 26ª edição do renomado Festival Tallinn Black Nights (PÖFF), na Estônia.